Friday, June 23, 2006

Carona

Adilson sabia que aquela sexta-feira seria o pior dia da semana. Afinal, ele nunca tinha o privilégio de emendar feriados. Nem ele, nem outros tantos trabalhadores. Mesmo assim, as empresas de ônibus se sentiam no direito de reduzir a frota nas ruas.

Havia mais de quarenta minutos que Adilson e outros trinta passageiros esperavam no ponto por algum transporte. Foi quando um ônibus apareceu, finalmente.

As pessoas na calçada começaram a se empurrar, pois todos queriam ser primeiros a entrar no veículo. Mas de nada adiantou: o motorista fez um sinal com a mão indicando que estava lotado e nem reduziu a velocidade para passar pelo ponto.

- Filho da...

Os homens e mulheres ficaram exaltados. Xingavam o motorista, a empresa responsável pelos ônibus, o prefeito da cidade e até seus chefes, que poderiam demiti-los pelo atraso. Os próximos quarenta minutos de espera seriam de muitos resmungos. E mais trabalhadores chegaram ao ponto. Não havia mais espaço na calçada de tanta gente esperando.

Quando o segundo ônibus apareceu, também estava lotado, porém o motorista parou no ponto assim mesmo. As senhoras idosas empurravam os homens e mulheres mais jovens para garantir seu direito de sentar nos bancos reservados. Algumas pessoas eram arrastadas pela multidão, deixando uma mão no ar segurando a pasta ou a bolsa. O veículo partiu com as portas abertas, obstruídas por homens e mulheres pendurados, com quase todo o corpo do lado de fora.

Adilson não entrou nesse ônibus. Por ser magro e fraco, fora empurrado pela multidão para longe do transporte e ainda levara cotoveladas no estômago e pisões nos pés. Pensou em desistir. Contudo, não podia, pois tinha quatro filhos para sustentar.

Cinco minutos depois, um micro ônibus branco parou com uma freiada brusca na frente do ponto.

- Levo todos vocês de graça! – gritou o motorista com a porta aberta, rindo, parecendo ligeiramente exaltado.

Houve alguns segundos de hesitação entre os passageiros, mas em seguida eles entraram alvoroçados no micro ônibus. O carro tinha como destino um bairro útil para todos. Foram vinte e cinco passageiros sentados e quinze em pé.

- Eu acho que esse motorista está bêbado... Estou sentindo cheiro de cachaça... – cochichou uma senhora para Adilson.

Ele também havia sentido o cheiro quando entrou no micro ônibus. No entanto, Adilson até compreendia a situação do motorista: provavelmente ele também fora obrigado pelo patrão a trabalhar na emenda do feriado e resolveu tomar umas para se alegrar. Além disso, Adilson e os outros passageiros não estavam em condições de recusar a carona por um pequeno detalhe como esse.

O micro ônibus seguiu direto, sem parar em qualquer outro ponto. Quando chegou ao bairro de destino, os passageiros começaram a estranhar.

- Parar nos pontos? Mas vocês só descem no ponto final, fiquem tranqüilos! – foi a resposta do motorista, acompanhada por sua gargalhada.

Algumas pessoas levantaram, assustadas, de seus lugares. Os que estavam em pé aproximaram-se da porta. O bêbado considerou a pressa das pessoas e acelerou mais o carro.

O veículo branco só parou quando entrou em um asilo para doentes mentais. O pânico espalhou-se entre os passageiros a partir do momento em que enfermeiros aproximaram-se correndo do micro ônibus e começaram a carregar e arrastar homens e mulheres para dentro da casa. Não adiantava gritar: os enfermeiros, naquele momento, não acreditariam que aquelas pessoas não eram doentes mentais.

Adilson ficou em silêncio e evitou reagir à investida dos enfermeiros. Em pensamento, tentava entender o rumo daquele dia atípico. Talvez ainda estivesse dormindo. Sim, provavelmente aquilo era um pesadelo originado pela sua preocupação com a sexta-feira.

Foi um sonho ruim bastante longo, porque durou até a segunda-feira. Com a volta do ritmo normal após o feriado prolongado, os responsáveis pelo asilo descobriram o engano ocorrido com os passageiros do micro ônibus.

O motorista Carlos de Souza bebera tanto antes de buscar os doentes para fazer a transferência de asilos que via as pessoas daquele ponto de ônibus como seus passageiros alienados. Naquele momento, ele não avaliara de onde estava tirando o grupo, se de uma calçada ou de um pátio. Suas respostas àqueles homens e mulheres na sexta-feira eram típicas de seu espírito brincalhão, mesmo que os ouvintes com problemas mentais não entendessem as piadas.

Depois do episódio, boa parte dos passageiros perdeu o emprego. Os patrões não conseguiram acreditar na história de seus funcionários. Adilson era um dos desempregados. O pesadelo estava só começando.

Friday, June 09, 2006

Boneca de vidro

Dona Adelaide não sabia mais o que fazer com sua filha, Maria Clara, de quatro anos. Sempre que levava a menina em suas visitas às amigas, a criança mexedeira quebrava um enfeite da casa.

- Maria Clara, não mexa nessa mesa!

- Eu quero ver...

- Veja com os olhos! Esses objetos em cima dela são feitos de porcelana e, se você derrubar qualquer um deles no chão, vai quebrar.

Mas não adiantava falar. Dona Adelaide olhava para o lado dois segundos e ouvia o barulho do enfeite estilhaçando no chão.

- Mil desculpas, dona Sueli! Essa menina é tão desastrada! – dizia para a amiga e depois apertava o braço de Maria Clara, falando mais baixo – Você me paga!

Algumas amigas de dona Adelaide entendiam que Maria Clara era apenas curiosa, como toda criança. Outras falavam mal, pelas costas, da educação que ela dava a menina.

- Aquela garotinha mexe em tudo! Não pode ver um enfeitezinho! E consegue destruir todos com aquelas mãozinhas desastradas! – dizia uma.

- Olha, que dona Adelaide não nos ouça, mas realmente é um prejuízo toda vez que ela resolve trazer a filha aos nossos cafés da tarde... – comentava a outra.

Maria Clara levava bronca, ficava de castigo, porém sempre quebrava mais alguma coisa na visita seguinte. Um dia, ela fez isso na casa errada. Quem oferecia o café na ocasião era dona Sabrina, uma mulher misteriosa que conhecera dona Adelaide em um curso de numerologia.

- Dona Adelaide, leve sua filha para a sala, por favor – pediu dona Sabrina calmamente.

Quando dona Adelaide saiu com Maria Clara do escritório de dona Sabrina, essa última alterou sua expressão serena. Os olhos cheios de raiva revelavam a bruxa má que tomava conta de sua personalidade. A pequena Maria Clara não teria um castigo leve dessa vez, pois quebrara os pertences de uma poderosa feiticeira.

Com um simples encanto, dona Sabrina transformou Maria Clara em um enfeite de cristal. Dona Adelaide, da noite para o dia, esqueceu-se que tinha uma filha de quatro anos e a bonequinha que brilhava na sua mesa de centro da sala de estar tornou-se seu objeto favorito.

A vingança da bruxa má não parou aí. Chegou o dia em que o café da tarde com as amigas foi marcado na casa de dona Adelaide. Dona Sabrina fez questão de levar seu sobrinho de três anos, Bruno, que viera passar uns dias com ela.

Entediado pela falta da companhia de outras crianças, o menino observava a mesa de centro enquanto as mulheres adultas conversavam. Coruja, urso, ganso, flor... Os cristais tinham as mais variadas formas e eram tão pequenos... De repente, ele a viu. Em um canto da mesa ela brilhava, sentada com as pernas e os braços esticados. Uma boneca, um brinquedo de menina.

Por alguns minutos - que pareceram horas para a consciência de Maria Clara -, a bonequinha de cristal ficou presa no olhar fixo e pensativo da criança que a observava. As mulheres, então, levantaram-se para ajudar a anfitriã a recolher as xícaras e Bruno ficou sozinho na sala. Avançou em direção a Maria Clara.

Com o dedo indicador, ele empurrou de leve a cabeça da boneca, que não podia gritar. O corpinho de cristal cambaleou, mas não caiu. Bruno riu. Colocou mais força na ação, porém o enfeite novamente não caiu. Ele riu mais. Maria Clara queria chorar e não conseguia. Sentiu que iria morrer, que seu corpo seria esquartejado em milhares de caquinhos de vidro.

Quando Bruno partiu com tudo para sua terceira investida, o dedo indicador parou a poucos milímetros da boneca com o som da voz da tia Sabrina.

- Vamos, querido. Há muito mais coisas interessantes lá em casa.

Maria Clara escapou da maldade de Bruno. Contudo, nunca mais teria paz com a possibilidade de ser quebrada.