Thursday, February 21, 2008

A ilha

Quando abri os olhos, estava em um quarto de hotel, deitada na cama e coberta apenas por um lençol branco de linho. A decoração do cômodo remetia a um ambiente de praia e verão e os adultos agitavam-se para descer até o restaurante, onde era servido o café da manhã.

Eu estava bem jovem, uma adolescente. Não havia casado, nem tido sequer o primeiro namorado. Era uma fase de viajar com os pais ainda e passar a viagem toda sonhando em conhecer uma turma de praia que me traria, como brinde, o meu primeiro amor.

Naquela ilha, finalmente aconteceu: encontrei um gaúcho, o Fabiano. O estranho era que ele se parecia muito com um gaúcho metido que estudara comigo na sexta série do ginásio, só que sem a arrogância do meu ex-colega de sala.

As cenas passaram-se como nos sonhos: eu e Fabiano corríamos na praia, jogávamos um ao outro no mar, beijávamos sob o pôr do sol. Escapávamos da severidade dos meus pais para aproveitar a madrugada com a turma até o dia amanhecer. As horas eram coloridas com as cores de um romance feliz.

A volta à realidade era conduzida pelos sentimentos de insegurança. Será que ele namoraria comigo fora da ilha? Será que eu deveria me apaixonar? Meus casos duravam apenas uma semana...

E chegou o dia de Fabiano ir embora. Ir embora da ilha. Atrás do carro carregado de bagagens, ele prometeu me esperar. E me beijou ardentemente, acendendo a chama da esperança em meu peito. Os dias posteriores não tiveram baladas com os novos amigos, nem jogos de sedução entre a adolescente tímida e o rapaz mais charmoso da turma. A viagem voltava à mesma rotina entre o tédio dos passeios com os pais e o sonho de viver um verão como o dos filmes e programas adolescentes da televisão.

Eu acusava meus pais por isso. Eles haviam me feito tímida e isolada. Com seus horários e regras, jamais me deixariam formar uma turma na praia. Com seus programas adultos, como eu conheceria alguém da minha idade? Enquanto eu tomava o meu suco de laranja e esperava eles beberem a vigésima saideira da madrugada, observava o público de cabelos grisalhos do restaurante e do bar. O que me restava era sonhar...

Duvidava da espera de Fabiano. Duvidava da existência de Fabiano. E já não sabia se era sonho ou realidade, mas a minha ilha de verão começou a afundar. Ia desaparecer do mapa. O que a atingia? Fogo? Bomba atômica?

Íamos morrer se continuássemos na ilha.

Fabiano existia. Ligou em meu celular e avisou que o noticiário da TV anunciava a tragédia. No entanto, havia uma esperança: uma última balsa, em um porto antigo da ilha. O dono do bar confirmou. Saí com meus pais correndo desesperadamente em direção à balsa, pouco antes das paredes do bar deitarem ao chão como folhas de papel sob a força do vento.

Nossa salvação era uma grande tábua de madeira pintada de azul, empurrada pelas águas por um tipo de transporte bastante precário. Cabia quase a população toda, entretanto. Pulei e caí deitada sobre a tábua, e estendi o braço direito para ajudar meus pais a embarcarem nessa fuga. Mas os dois permaneceram estáticos. Meu pai dava o braço à esposa e olhava a balsa com um olhar conformado. Minha mãe aceitava o braço do marido e - pude ver apesar da escuridão - deixava uma lágrima escorrer em seu rosto.

Eles decidiram ficar na ilha!

Uma onda de desespero invadiu meu peito e explodiu em gritos. Eu precisava vencer a atitude derrotista tão característica daqueles dois. Minha mãe chorava copiosamente e logo vi seu braço direito deixando o de meu pai, enquanto o esquerdo se estendia à minha ajuda. Meu pai aceitava a morte.

Era como se ele seguisse as ordens do destino, mesmo sem nunca ter acreditado em destino. Como se fosse impossível ele conseguir subir naquela tábua de madeira. Como se para salvar nossas vidas, ele precisasse abrir mão da vida dele.

Alcancei seu braço. Puxava, chorava, implorava. Ele desviava - o braço, o corpo, o olhar. Do mesmo jeito sério e cheio de raiva com que desviava de mim sempre que implorava para ele não sair de casa, depois de alguma briga séria com a minha mãe.

Depois das brigas, ele sempre ia embora. Voltava horas depois sem dizer uma palavra, a ninguém. As vezes parecia que, no fim, ele ficava com mais raiva de mim do que da minha mãe. Seu jeito duro e intransigente me machucava. Eu odiava os dois. Ela por começar a briga, ele por levar a briga ao limite, à exaustão. Eu só queria paz...

Por que ele tinha que ser daquele jeito? Por que não me olhava enquanto eu implorava e o puxava para a salvação? Minha força foi tanta, que consegui joga-lo para a balsa. Ele ficou ali, deitado, estático, como se não soubesse como reagir à minha violência. Continuava sem me olhar, com a expressão séria e transtornada. Eu o abraçava e chorava, como nunca havia chorado na vida.

Lágrimas de desabafo. Desabafando o ódio, os ressentimentos, a angústia, a dor. Com um nó sufocante na garganta, eu senti que precisava dizer aquela frase. Aquela frase que não era dita há muitos anos. Aquela que deveria fazê-lo aceitar a minha súplica de lutar pela vida. De forma tímida e engasgada, eu finalmente disse em seu ouvido:

- Te amo...

Senti o impacto dessa frase no peito e saí do estágio mais profundo do sono. Não abri os olhos de imediato. Percebi a sensação de estar no meu quarto, do lado do meu marido, com uma bagagem de vida muito maior do que aquela da fase da adolescência. E a certeza de que algumas ilusões permanecem guardadas apenas para o meu mundo dos sonhos, porque é real a suposição de que nunca mais conseguirei dizer eu te amo para meu pai.

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