Friday, May 26, 2006

Redial

Théo abriu a lista telefônica procurando o anúncio de uma financeira. Precisava urgentemente de um empréstimo. Sua empresa havia fechado mais um semestre no prejuízo e sua esposa perceberia a crise em breve.

Apertou os oito dígitos indicados na página amarela e aguardou. Só atenderam após o terceiro toque.

- Alô?!

- Boa tarde! É da financeira?

- Não, senhor.

- Desculpe, foi engano.

Desligou o telefone e fechou a lista para ver o ano de impressão na capa. O livro estava desatualizado.

Antes de ligar para o serviço de informações, foi buscar algo para comer. A tensão dos últimos dias afetara seu apetite e a falta de uma boa alimentação estava lhe causando mal estar.

Heloísa viu o marido passando em direção a cozinha. Ele caminhava distraído - nem notara a presença da esposa na sala. Ela, ao contrário, vinha reparando há dias a expressão pálida e com olheiras do rosto dele.

Para Heloísa, não havia dúvida: Théo estava apaixonado por outra mulher. Quando os dois eram jovens, ele teve os mesmos sintomas ao se apaixonar por ela. Não dormia, mal comia e vivia com tremedeiras – causadas, obviamente, pela fraqueza. Heloísa encantara-se ao ver tamanho sofrimento por sua causa.

Depois de casados, quem sofria era ela. Tinha grandes crises de ciúme toda vez que o marido passava por uma noite de insônia ou comia menos que o de costume. Perguntava o nome da vagabunda que havia roubado o coração de seu Théozinho. Ele logo a abraçava e explicava o motivo de seu estresse. A esposa compreendia os problemas profissionais do marido e acalmava-se após inúmeras juras de amor.

Mas, naquele momento, Heloísa tinha certeza. Théo vinha trancando-se no escritório da casa todas as noites, depois de recusar o jantar. Também não conversava mais com ela durante o café da manhã. Ela ainda não havia feito um escândalo, porque sabia que ele não lhe diria o nome da piranha.

Como o homem demorava na cozinha, Heloísa correu até o telefone. Apertou a tecla redial. O aparelho encaminhou rapidamente a ligação para o último número discado e ela ouviu três toques antes de uma voz feminina atender.

- Alô?!

A esposa traída desligou imediatamente, tremendo dos pés a cabeça. Era um “alô” de mulher! E de uma mulher com uma bela voz! Será que seu Théozinho havia se apaixonado pela voz daquela vadia?

Ela precisava ligar novamente. Precisava descobrir o nome da cachorra. O nome e o endereço. E como ela conheceu e se envolveu com um homem casado.

Tirou o fone do gancho e apertou novamente o redial.

- Alô?!

Heloísa não conseguia falar.

- Alô?! – repetiu a voz pacientemente – Alô?!

- Ãh... É... Bo... Boa tarde! Aí é... uma... em... empresa?

- Não, senhora, aqui é residência.

- Ah... desculpe, sim...

Desligou suando frio. Sem dúvida, a maldita tinha uma bela voz. Era bastante educada também. Devia ser linda.

Heloísa olhou para os lados. Ninguém se aproximava. Então, ligou novamente.

- Alô?!

- Boa tarde, com quem eu falo? – perguntou tentando mudar o tom de voz.

- Com quem gostaria de falar? – respondeu a bela voz, gentilmente.

“Droga, custa me dizer seu nome?”, pensou Heloísa. Ela inspirou profundamente e voltou a conversa.

- Aqui é da loja Beautiful. Nós estamos fazendo uma pesquisa para avaliar o perfil das nossas clientes.

- Ah, sim, da Beautiful? Gosto muito de fazer compras na Beautiful! Responderei com o maior prazer!

“Humm, mesmo gosto para roupas...”, avaliou a esposa de Théo.

- A senhora é?

- Helena. Aqui em casa só eu tenho cadastro na Beautiful. Minha mãe prefere a Lindas.

“Helena... Então o nome da ladra é Helena... Com H, como o meu nome... E gosta da mesma loja... No mínimo é uma garotinha, já que ainda mora com a mãe! Uma garotinha com tudo no lugar!”

- Alô?! – chamou Helena.

Heloísa despertou de seus pensamentos.

- Desculpe. Quantos anos a senhora tem?

- Trinta e dois. Não precisa me chamar de senhora, pode me chamar de você, por favor.

“Eu sabia que era mais nova! Quinze anos mais nova do que eu! Ah, Théo Figueiredo de Souza, eu mato você”. Heloísa tinha os olhos marejados. Sentia o rosto em brasas.

- A... – limpou a garganta – Desculpe. A senhora é casada?

- Não, solteira.

“Claro!”

- Mas tem namorado?

A mulher de bela voz deu uma risadinha.

- Um casinho aqui, outro ali, sabe como é, né? – disse em tom de intimidade.

- Sei... Sei sim... – de repente, a voz de Heloísa mudou - Com homens casados, né, vagabunda?

- Como? – respondeu Helena com espanto.

- Você não tem o direito de destruir a minha família, está ouvindo? Mulher da vida! Prostituta de luxo! Vagab...

- Minha senhora, a senhora enlouqueceu? Eu nunca...

- Eu sei de tudo! De tudo! Você deixa o meu marido em paz, está ouvindo? Ou eu acabo com você, sua...

- Eu nunca sai com homens casados! Pelo amor de Deus! – Helena gritava para se fazer ouvir pela maluca do outro lado da linha.

- Ah, então ele não te contou que era casado? Pois é sim! E muito bem casado! E eu já despertei toda essa paixão que você acha que está conquistando! Fique sabendo que o seu destino é fazer o mesmo que eu faço agora se você levar esse cachorro embora: acabar com a festa das amantes dele!

- Jesus Cristo! A senhora só pode ter ligado para o número errado!

- Ele acabou de ligar pra você! Eu sei de tudo! Foi só apertar o redial no telefone, sua falsa!

- Louca! – desconcertada, Helena bateu o telefone na cara de Heloísa. Depois desconectou o fio do aparelho da tomada e se recompôs.

- Cachorra! Piranha! Vagab... Alô? Alô? – Heloísa estava rouca de tanto gritar – Isso não vai ficar assim! Não vai ficar assim! – berrou olhando para o telefone.

Ela jogou o aparelho no chão. Passou as mãos pelos cabelos e começou a chorar. Um choro contido, profundamente sentido, liberando seu desgosto através das lágrimas.

Quando conseguiu respirar, sentiu que alguém a observava. Théo, parado na porta da cozinha, de onde assistiu à cena inteira, começou a aplaudir vagarosamente. Com o corpo encolhido, ela virou o rosto e lançou para ele um olhar triste.

- The end! – foi tudo o que ele pôde dizer. E voltou para dentro da cozinha.

Friday, May 12, 2006

Bicho-humano

João não podia fazer idéia boa de si, porque nunca ouvira uma palavra de carinho. Desde o nascimento, só ganhava apelidos como “peste”, “trapo” e “lixo”. O passatempo preferido de seus pais era coloca-lo de castigo. O dos tios e avós, ignora-lo. O dos primos e colegas de escola, humilha-lo.

A mãe de João engravidara quando acreditava que filho de prima com primo nascia com defeito. Ela havia jurado ao primo, pai de João, que jamais pegaria barriga enquanto eles estivessem casados. O descuido a fez ser abandonada pelo marido.

- Esse coisa-ruim sem pai não vai mamar em mim não! – ela disse para a enfermeira que trouxera João nos braços, logo após o parto.

Como o padre dizia ser pecado abandonar o filho, a mãe de João ficou com ele. O pai também ouviu os conselhos da igreja e voltou para a casa da esposa. Marido e mulher passaram a viver como irmãos e descontavam suas frustrações no menino.

- Ô mosca-morta, vê se faz algo que preste e traz a caixa de ferramentas pra mim – gritava o pai e João obedecia, carregando com dificuldades o objeto tão pesado para seus braços magros.

A diversão de João era observar e imaginar. Ia ao campinho de futebol nas manhãs de domingo e assistia, escondido, às partidas entre os garotos do bairro. Em sua imaginação, ele tomava o lugar de Zezinho, o zagueiro do time de uniforme azul. Quando fechava os olhos e se perdia em sonhos de jogador, era descoberto por algum dos moleques do banco de reservas.

- Olha lá o João-bobo dormindo em pé! – gritava o mais gordinho e os outros garotos gargalhavam.

- Já disse que aqui não é lugar de bobão! Sai andando, Bicho-torto! – vinha gritando Zezinho com autoridade, ao final da partida.

“Bicho-torto” era o apelido de João mais comum entre as crianças e adultos da vizinhança. Seus primos haviam se encarregado de espalhar a história de que ele era filho de primo com prima e, por isso, havia nascido torto. Ao contrário da fama, João não tinha qualquer defeito e até seria bem saudável, se seus pais se preocupassem em alimenta-lo como gente.

- Mãe, essa não é a comida do Rabugento? – às vezes o menino acreditava que sua mãe havia confundido seu prato com a tigela do cachorro vira-lata da casa.

- Deixa de ser ingrato, seu melequento! Come tudinho aí! Não quero ver sobrar um grão nesse prato, tá ouvindo, ninho de rato?

Como nunca havia comido doce, João conformava-se com o gosto amargo de suas refeições e ingeria tudo, até o último grão.

Na escola, ele tinha um desempenho mediano. E isso lhe rendia muitos castigos.

- Vai ficar ajoelhado no milho até melhorar essa redação! – exigia a professora, que não entendia como João, um garoto privado de brinquedos e brincadeiras, não conseguia tirar a nota máxima em todas as matérias.

- Olha esse boletim! Você é um nada mesmo, até uma formiga é mais inteligente do que você! – irritava-se o pai de João toda vez que o menino pedia sua assinatura no boletim da escola.

João não respondia. Nunca respondia. Ele só podia acreditar que todos estavam certos sobre ele. Era mesmo um bicho torto. E um bicho torto não merecia ganhar brinquedos ou ter amigos. Um bicho tinha que viver isolado.

Aos vinte anos, arrumou sua bagagem. Além dos trapos velhos para vestir, levava uma rede de pesca e uma faca bem grande para a caça, porque aprendera nas aulas de história que o homem vivera de caça e pesca nas primeiras eras. Carregava também algumas garrafas de vidro que catara nos sacos de lixo da vizinhança, para encher de água.

Dia e noite caminhou pelas montanhas para encontrar seu novo lar. Achou uma caverna próxima a um rio de água doce e instalou-se em sua entrada para poder usufruir a luz da lua e do sol.

O menino imprestável mostrou-se um rapaz bastante eficiente na arte da sobrevivência. Viveu quarenta anos de solidão sem doenças ou maiores necessidades. O silêncio, às vezes, trazia as vozes dos fantasmas do passado; ele apenas as ignorava.

No bairro onde nasceu, João tornara-se uma lenda. Mesmo seus pais haviam esquecido a existência do filho e apontavam Bicho-torto como um personagem do imaginário popular. A estória contada pelos primos e colegas de João para os filhos e, posteriormente, para os netos falava de um menino tão esquisito, mas tão esquisito, que havia se isolado nas montanhas para não incomodar as pessoas do bairro com sua inferioridade.

Um dos jovens da nova geração sempre acreditara na lenda e resolvera encontrar Bicho-torto nas montanhas. Como repórter de uma emissora de TV da região, levou uma equipe consigo para a viagem.

João estava olhando o horizonte sentado em uma pedra, na frente da caverna, quando ouviu o barulho de passos machucando a natureza. O jornalista e o operador de câmera aproximaram-se, atravessando o mato alto com dificuldades.

- Boa tarde! O senhor é morador daqui da região ou está apenas a passeio?

O Bicho-torto demorou a responder. De repente, não sabia se ainda era capaz de conversar com outros homens. Foram quarenta anos de poucas palavras com os animais e outras tantas soltas em pensamento. Recordando-se da fase anterior ao seu isolamento, também não tivera muitas oportunidades de conversa quando ainda convivia com os seres de sua espécie.

A frase saiu atrapalhada de sua boca, contudo ela foi suficiente para o repórter entender quem João era. O operador ligou a câmera e, por mais de uma hora, o jornalista demonstrou tanto interesse por João, que o morador da caverna não parou mais de falar. Mostrou seu abrigo, contou sua rotina, repetindo cada palavra pacientemente quando o jovem não o compreendia. Esse último, por sua vez, também respondia as dúvidas de seu entrevistado.

- O senhor é muito habilidoso!

- É o que?

E o repórter parava a filmagem para dar significado às primeiras manifestações de carinho que João recebia em vida. Com sessenta anos de idade, ele tampouco conhecia os sentimentos que naquele momento formavam um sorriso em seus lábios, mas gostava deles.

A equipe da TV foi embora e João voltou ao seu isolamento. No entanto, a partir dali, o silêncio lhe traria as vozes dos anjos do passado recente.