Friday, July 21, 2006

Bagagem

Ninguém sabe o que as pessoas carregam em suas sacolas e bolsas dentro do vagão de um trem do metrô. Em São Paulo, são milhares de usuários por dia entrando e saindo nas estações carregando mochilas, sacolas plásticas, bolsinhas bonitinhas que às vezes não servem nem para guardar uma carteira, são apenas enfeites na produção visual das mulheres. Nos horários de pico, esses objetos batem e esbarram até em quem está sentado, porém a pessoa atingida nunca saberá o que havia dentro do que a acertou.

Aquela senhora ali, por exemplo. Vestida de saia longa, camiseta azul e ostentando um perfeito coque acima da cabeça. Ela segura com os pés um enorme saco de pano bege, redondo de tão cheio. Sua bolsa de mão, também lotada, está no colo de um dos filhos sentados de frente para ela, que está em pé. Os dois meninos ainda carregam nas costas mochilas frouxas, nas quais devem guardar apenas seus cadernos e estojos, entre outros pertences leves de moleques. Imagino que no enorme saco de pano bege estão todas as roupas dos coitados para passar o fim de semana com o pai ou alguma avó que mora longe da casa deles.

Sim, o que cada um aqui carrega em suas sacolas e pastas pode contar suas histórias. Aquele executivo em pé ali, por exemplo. Ele está de calça social, camisa branca e blazer. A mochila em suas costas exibe um formato estranhamente retangular. Ele pensa que colocando o notebook na mochila esportiva está livre da cobiça dos ladrões. Esse foi fácil de adivinhar!

Nesse minuto, o que ninguém sabe mesmo é o que eu carrego debaixo do casaco. Talvez nem tenham percebido que eu escondo algo debaixo do braço esquerdo. O pacote é pequeno e faz um volume quase imperceptível sob o pano preto.

Esse segredo faz-me sentir diferente. Especial. Sou poderoso! Mando nesse vagão se eu quiser!

Minha camisa e minhas calças também são pretas. Assim como as meias e os sapatos. Os óculos escuros completam meu estilo “homem mau”. Aposto que aquela patricinha, aquela menininha rica e perfumada, que não se conforma com o fato de estar no metrô junto aos pobres, e se mantém sentada no assento reservado aos idosos e mulheres grávidas, mesmo com uma senhora em pé na sua frente, está completamente atraída por mim. Garotas frescas adoram os “bad boys”. A bolsa dela, de uma marca destinada ao estilo “sou revoltado”, revela sua atração. Esses riquinhos que tentam parecer rebeldes usando grifes... Sem comentários.

A senhora em pé na frente da patricinha não nota a minha presença. Posso apostar que ela não pára de pensar em como a patricinha é folgada. E em como é ruim ter que se conformar com a folga da garota, sem coragem para pedir a ela que se retire do banco.

Já a mulher sentada de lado na minha frente – estou em pé - deve pensar que eu sou um bandido. Ela abraça sua enorme bolsa marrom com força desde que me aproximei. O que ela pode carregar de tão importante ali? Um guarda-chuva? Com certeza tem um chocolate ali dentro! É uma mulher obesa, que ocupa com facilidade todo o espaço do assento individual e mais um pouco. Ela se esforça para encolher a gordura e não se encostar a mim. Gosto de provoca-la. Jogo o corpo para frente diversas vezes com o balanço do trem para esbarrar em seu braço gordo. Ela não vê a hora de sair do metrô.

O garoto no colo do pai, ao lado da mulher obesa, deve ter uns quatro anos. Seu olhar fixo em meus óculos brilha a curiosidade típica da infância. Tenho vontade de rir sobre a sua fantasia, mas é minha expressão séria que alimenta seu encantamento. Mantenho a postura de agente secreto e o menino sonha com as minhas aventuras.

Será que em sua imaginação eu carrego algo do lado de dentro do casaco preto? Sim, ele com certeza sabe que há algo aqui. Não mexo o braço esquerdo para nada, apenas prendendo o volume. Drogas? O menino não iria tão longe... Uma arma? Que tipo de arma? Um revólver pequeno? Não, crianças impressionam-se mesmo é com metralhadoras! Eu poderia carregar uma metralhadora e atirar, assustando os passageiros, que se jogariam no chão. Mas eu teria apenas um alvo, que a câmera só revelaria depois que ele estivesse morto no chão do vagão ou depois de horas de fuga em alguma das estações e pelas ruas da cidade.

Esse moleque precisa parar de assistir a filmes de ação! Não são para a idade dele!

Humm... Uma bomba? Sim, eu posso estar carregando uma bomba. Mas produção caseira seria muito amador. Meu explosivo é profissional! Destruirá completamente o vagão no qual estou, atingindo também as duas composições vizinhas. Serão dezenas de pessoas mortas e todas as outras ficarão feridas com o impacto em todo o trem.

Explodirá embaixo da terra ou a céu aberto, caminhando junto com as avenidas da Zona Norte? Ainda estou debaixo da terra, no túnel da linha azul. Gostaria de ver o efeito sobre o que está acima daqui. Se for quando o trem estiver parado em alguma estação, atingirá mais pessoas? Infelizmente, na qualidade de homem-bomba, não saberei a resposta.

Tudo bem, não estou carregando uma bomba. No entanto, aquele cara ali tem uma atitude suspeita. Ele veste uma jaqueta volumosa e encara todos os passageiros do trem com raiva no olhar. O chiclete na boca dele deve ter perdido o gosto há muito tempo, mas ele o continua mascando, com ar de quem vai arrumar briga com o primeiro que o encarar de volta.

Pensando bem, ele tem muita vaidade. Não combina com o perfil de um homem-bomba.

Será que a senhora de frente para a patricinha deixaria uma bomba no vagão? Colocaria sua mini-sacola no chão, sem que qualquer um notasse, e sairia do trem com a expressão mais inocente do mundo. Quando chegasse a hora, ela olharia o relógio e daria um maléfico sorriso. O barulho chegaria a seus ouvidos, mas as conseqüências não a atingiriam. Com certeza, na cara da patricinha ela iria adorar jogar uma bomba. Seria um ótimo final de novela!

Olho de novo em sua direção e a senhora continua ali. Sua mini-sacola tem mais jeito de presente para algum neto do que de um disfarce para uma bomba relógio.

Já passamos da Estação Luz e o trem começa a esvaziar-se. Na Estação Tietê, com acesso ao Terminal Rodoviário, descubro os que realmente carregam malas de viagem. Como gostaria de saber o que cada uma dessas pessoas que saem do vagão carrega para sua viagem a outras cidades!

A medida em que passam as estações, vou ficando mais frustrado com a falta de chance de descobrir o que cada um carrega em suas bagagens. A senhora leva a mini-sacola e a patricinha desce na mesma estação. O homem da jaqueta volumosa desce na seguinte, sem brigar com ninguém. Para infelicidade da mulher obesa na minha frente, ela desce apenas na penúltima estação da linha - aposto que a viagem nunca foi tão longa para ela!

Eu sento no lugar da mulher, apesar de estar próximo a estação final, Tucuruvi. O garoto ao lado, ainda no colo do pai, finalmente cutuca o meu braço esquerdo. O pai pede desculpas pela indiscrição do filho. Eu sorrio para o garoto e resolvo revelar a ele o que eu escondo do lado de dentro do casaco. Tiro a pequena caixa com a mão direita e abro a tampa com a esquerda. Seus olhos brilham ao ver o conteúdo da caixa, mas não de surpresa. Brilham por confirmar sua certeza de que eu escondia um brinquedo embaixo do casado. Um lindo carrinho de madeira, feito pelo meu pai, que eu acabara de enterrar.

Ah, graças a Deus, ainda existe a inocência das crianças!