Friday, March 03, 2006

Renovar

Mestre Beto é morador de rua. Dorme sempre no mesmo banco da calçada próxima a uma biblioteca. Porém, só deita nele depois da meia-noite e levanta todos os dias às cinco horas da manhã, período em que não há movimento por ali. Durante o dia, Mestre Beto passeia pelo quarteirão, cumprimentando as pessoas e desejando bons dias. Jamais pede esmolas ou incomoda os transeuntes.

Há nove meses, quando foi despejado da quitinete que alugava no centro da cidade, Mestre Beto foi obrigado a ficar na rua. Mas teve como opção trocar de bairro, e o fez, porque sentiu vergonha de sua condição perante os amigos e conhecidos.

A cidade encarava uma primavera quente nessa época, então ele não teve dificuldades para se acostumar a dormir ao relento. E havia escolhido ficar próximo a uma biblioteca, porque estar perto de um local voltado para a cultura era uma forma de não apagar de sua memória os dias gloriosos do passado.

Quando jovem, Betinho, como era conhecido, formou-se em História. Começou a carreira dando aulas em cursinhos pré-vestibulares e logo conseguiu vaga em uma grande Universidade. Lecionou por mais de trinta anos com gigantesca paixão.

Contudo, chegou o dia em que a direção da Universidade mudou, as exigências curriculares aumentaram e o professor Beto foi demitido. Homens e mulheres jovens, apresentando certificados de mestrados e doutorados, substituíram boa parte do velho corpo docente. Depois de um ano procurando emprego e vendo o dinheiro ir embora, o professor Beto não teve mais condições para pagar o aluguel da quitinete e passou fome nos três meses que esperou para ser despejado.

Onde mora agora, Mestre Beto conquistou facilmente a amizade de alguns trabalhadores do quarteirão com sua simpatia. Com o tempo, passaram a trata-lo como uma espécie de segurança da área, já que ele estava sempre ali, acompanhando atentamente a rotina. Os donos da lanchonete e do restaurante por quilo da rua da biblioteca até lhe pagavam com duas refeições básicas por dia e o deixavam usar o banheiro livremente – no qual ele ainda arriscava uns banhos de torneira na pia.

Seus novos amigos gostavam muito de conversar com ele nas horas vagas. Porque Beto contava histórias, as histórias de verdade. Do país, do mundo. As mesmas que aqueles homens e mulheres já haviam escutado na escola, mas que agora eram apresentadas a eles com uma riqueza de detalhes impressionante. Foi por esse motivo que ele ficou conhecido como Mestre Beto.

Quando chegou o outono, Olavo, que trabalha na biblioteca há cinco anos, fez uma campanha para arrecadar algumas roupas de frio para Mestre Beto. O morador de rua pôde, então, enfrentar bem aquecido a queda de temperatura.

Nessa madrugada, Mestre Beto passou sua primeira noite de inverno na rua. Fez tanto frio, que ele não conseguiu dormir nem por um minuto. Olavo entra na lanchonete de manhã e escuta quando Mestre Beto comenta com o dono do estabelecimento que está pensando em procurar um albergue para as próximas noites.

- Mestre, vem comigo até a biblioteca?

Olavo oferece uma cadeira para Mestre Beto, quando eles entram na biblioteca, e expõe sua idéia. Ele convida o morador de rua para dormir lá dentro durante o inverno. Os funcionários da biblioteca arrumariam um colchão e ele poderia ficar ali durante a noite. Beto tem os olhos marejados ao dizer que aceita a oferta.

- Obrigado, meu amigo! Muito obrigado! Você é realmente um rapaz muito bom! Obrigado!

- O que é isso, Mestre! Não estou fazendo nada mais do que a minha obrigação. Além disso, sei que o senhor vai se divertir com esses livros, hein? Só não vale bagunçar tudo, beleza?

- Mas é claro que não. Porém, confesso que lerei muitos livros! Ah, como é bom voltar a leitura, rapaz!

Em sua primeira noite na biblioteca, Mestre Beto repara no estado de conservação do acervo. São mais de quinhentos mil itens mal cuidados e sem organização espacial. Nem dez por cento se encontra catalogado eletronicamente – todo o restante consta em fichas escritas à mão, quase apagadas.

- São dez jovens funcionários contratados e apenas três vêm trabalhar na biblioteca. E nem esses três fazem o serviço corretamente. Enquanto isso, velhos como eu, mas ainda dispostos, são recusados para qualquer emprego. O que há com esse país?

Entre livros, revistas, postais e jornais misturados, Mestre Beto se revolta e resolve arrumar sua nova casa. Começa por separar os materiais por assunto e leva a noite toda para organizar cinco por cento dos itens. Só percebe que não dormiu nada quando vê Olavo e Bianca entrando na biblioteca as nove da manhã.

- Desculpa, meu amigo Olavo, mas não estou bagunçando nada, porque esse lugar já estava bem bagunçado! – diz rindo ao ver a cara de espanto de Olavo.

- Mestre, o senhor não precisa se preocupar com isso. Está aqui como hóspede. Deixe como está.

- Deixa ele, Olavinho! Pelo visto, o Mestre tá bem contente de poder cuidar dessa velharia. Fiquei até com vontade de comprar material para ele encadernar os mais antigos – empolga-se Bianca.

- Pára com isso! Você é muito folgada, Bia!

- Acho melhor eu sair, não quero atrapalhar o trabalho de vocês.

Mestre Beto faz uma de suas refeições na lanchonete e passa o dia todo na rua, fazendo sua vigilância costumeira. Às vezes dá uma espiada dentro da biblioteca e vê Olavo continuando seu trabalho e Bianca batendo papo na Internet. Bruno, que também bate seu cartão de ponto lá todos os dias, não apareceu hoje. Os outros sete funcionários não aparecem há mais de um ano, pois Bruno bate os cartões de ponto deles, ganhando uma comissão por isso. Ninguém fiscaliza o local.

Nessa segunda noite na biblioteca, Mestre Beto decide mudar de atividade. E consegue catalogar eletronicamente mais dez por cento do acervo. Bianca demora a acreditar quando vê a tela do computador no dia seguinte. Engole em seco sua vergonha e passa as suas próximas horas de trabalho continuando o que Mestre Beto começou.

Os três meses de inverno correm em intensa atividade. Mestre Beto passa a ajudar Olavo e Bianca também durante o dia e com a chegada da primavera mais de sessenta por cento do acervo já está organizado nas prateleiras e catalogado no computador. Bruno assiste àquela renovação da biblioteca indignado e de braços cruzados.

- Nem clientes temos! Pra quê tanto trabalho?

Ao escutar isso, Mestre Beto traça uma nova meta: atrair adultos e crianças para a biblioteca durante as férias de verão. Olavo e Bianca ficam empolgadíssimos com o novo desafio.

Com a ajuda dos outros trabalhadores do quarteirão, a equipe monta um cenário de teatro atrás do banco no qual Mestre Beto dormiu tantas noites. O primeiro dia de apresentação agrada tanto as crianças, que garante público para o verão todo. O único ator é Mestre Beto, contando histórias de livros da biblioteca com alegria e paixão, incentivando a imaginação de sua platéia através da leitura. As crianças e até mesmo os adultos ficam tão fascinados pelo que a leitura pode proporcionar que logo em seguida alugam novos livros na biblioteca, antes de irem para suas casas.

O movimento no quarteirão logo chama a atenção da imprensa e, conseqüentemente, da direção da biblioteca. Uma fiscalização severa demite os sete funcionários “fantasmas” e Mestre Beto é contratado no lugar de Bruno, por um salário maior. A diretoria ainda lança campanhas para arrecadações de livros novos e edições atualizadas dos títulos do acervo. Uma quitinete é construída nos fundos da biblioteca para Mestre Beto morar. A biblioteca torna-se uma grande atração permanente, graças ao velho professor renovador, ainda que desprovido de mestrados e doutorados.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Oi, adorei o conto ! mas achei ele tão final feliz !! hehehe
a louca querendo tragédia !! rs
beijão e continue assim !
Cox

6:01 AM  
Anonymous Anonymous said...

GATA, TA MARAVILHOSO!!! AMEI!!!!!

9:29 AM  

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